[Arco Filler] Águas Passadas

Ainda era cedo - Levante sua cabeça Kahleed! - Vagarosamente ergui meu queixo levando o antebraço direito até os olhos que continuavam a escorrer lágrimas. A minha frente, o corpo sem vida de meu pai, enrolado por panos que me impediam de ver seu rosto uma última vez. Olhava para Amon, 15 anos, aquele que sempre fora um tanto mais rebelde em suas atitudes e percebia que ele também chorava, mas tinha uma expressão fria em seu rosto, parecia sequer notar minha presença naquele ambiente. Ao meu lado, com a mão direita sobre meu ombro estava Donkor, o mais velho com 21, tinha seriedade e nenhuma gota escorria de seu rosto.

Era de se esperar que Amon fosse tomar alguma atitude irracional, até mesmo eu queria me descontrolar um pouco naquele momento, ele socou com toda força a pilastra a sua esquerda, o que fazia sua mão sangrar e derrubava a lamparina fazendo-a cair e se quebrar no chão. Talvez pelo choque, pelo susto, negação ou pura raiva, Amon corria de cabeça baixa para fora do salão de cerimônia. – Deixe-o. – Falava Donkor para mim ao ver que eu esticava meu braço como se tentasse chamar pelo irmão do meio que correra.

Virei meu rosto novamente e voltei a olhar para o corpo enrolado à minha frente, não teríamos mais muitos minutos para ficarmos sozinhos ali com nosso pai sem vida, sabia que em breve ele seria direcionado à sua tumba e levado para fora do palácio de modo que os cidadãos pudessem se despedir de seu imperador. No pouco tempo que me restava, lembro-me de ter o desejo de falar alguma coisa, mas as palavras fugiam de minha voz, não sabia o que ou como me expressar.

[7 anos depois]

Meus braços tremiam, aquela presença a minha frente sempre me soava como aterrorizante na maioria das vezes, sua brutalidade, agressividade, já tinha o visto dar diversos gritos e apontado sua espada para muitos, a maioria colegas. Eu estava com quinze anos e começava meu treinamento de combate, não era algo exigido para que alguém do império fizesse, muito menos eu como um príncipe, porém, meu irmão havia me ordenado a isso, não era um pedido, claramente uma ordem: “ Você amanhã as 8h em ponto deve estar no campo de treinamento, vai treinar junto dos outros novatos, é melhor não se atrasar. “

Lembro-me de engolir seco naquela hora, estava lançando pedrinhas para o ar, praticando minhas habilidades para o jogo de acerte o alvo que costumava brincar com os outros adolescente da cidade, mas segundo Amon eu tinha acabado de me tornar um homem naquele dia, ao completar meus quinze anos e no dia seguinte precisaria começar a agir como tal.

–Vocês que estão aqui, devem se lembrar de que suas vidas pertencem á Nação de Kayro e que devem lutar a favor do império! Vão aprender que se um superior lhe mandar colocar as mãos no fogo, você deve fazê-lo sem questionar! – As palavras de Amon eram rígidas, eu tinha escutado que ele não tinha muito tempo como treinador do exército, ou recrutador, sabe se lá como chamavam. Eu o conhecia o suficiente para saber que nada daquilo era brincadeira, mas os outros não, um dos garotos, logo ao meu lado soltava algumas risadas e dizia em tom debochado. – Se eu queimar minhas mãos como vou segurar a espada?

Eu não sabia dizer se era a mais genuína audácia, loucura ou apenas falta de noção, mas a reação de Amon foi a pior possível. E nesse momento, eu soube... Que realmente eu não ia gostar de absolutamente nada daquele lugar.

– Esse ao seu lado, é Kahleed, meu irmão mais novo e príncipe de Kayro – Não era como se todos do império me conhecessem, mas seus olhares intrigados eram o mesmo que o meu, o que diabo ele estava planejando, o que eu tinha haver com as palavras daquele garoto?  

Amon caminhou até um canto, próximo a um muro daquele campo aberto onde estávamos e voltou com um jarro em suas mãos. – Venha até aqui Kahleed. –

Me aproximei devagar... Receoso com toda aquela situação, mas tendo total certeza de que não deveria rejeitar a ordem de meu irmão, de alguma forma, mesmo que minha mente me mandasse simplesmente correr dali, meu corpo seguia para frente.

Removendo a tampa do jarro, pude ver antes de todos a serpente negra que repousava em seu fundo, quieta, pacifica, mas extremamente mortal. Minha cabeça se ergueu lentamente e meus olhos encararam os de Amon, eu sequer precisava falar algo para transmitir o medo que sentia, e então com a mesma voz forte ele ordenou mais uma vez.

– Coloque no mão no fundo do jarro. – Os outros garotos observavam aquilo curiosos, sem sequer terem noção do que estava de fato acontecendo. – Mas... – Tentei retrucar, e recebi apenas um olhar sério como retorno. Eu o temia... Percebi naquele dia que eu temia meu irmão, seu jeito áspero de falar, uma frieza que era simplesmente aterradora.

Fechei meus olhos e conseguia sentir com ainda mais clareza o meu corpo estremecer... Escorreguei meu braço para dentro do jarro e ignorei completamente minha visão. Pude sentir o ser rastejando pela minha mão, sua pele fria, parecia quase sem vida, eu já tinha pego várias serpentes em meus braços, mas sabia que aquela, era uma das mais venenosas do império.

Enfim retirei minha mão de dentro do jarro, sentia uma sensação de paz e desespero, era extremamente insano, Amon estava tentando me ensinar algum tipo de lição? O que exatamente era aquilo. Antes que eu pudesse continuar pensando, ele empurrou o jarro com seu pé, fazendo com que a serpente fosse projetada para fora.

Onde agora sim os outros jovens ali se assustavam e davam passos para trás. – Meu próprio irmão eu não hesitei em fazê-lo correr perigo, o que vocês acham que eu poderia fazer com cada um de vocês? Um guerreiro do império deve estar pronto para arriscar sua vida ao comando de seu superior! Isso exige coragem, confiança, força! Veremos se vocês tem o que é preciso para começarem o meu treinamento. – Suas palavras me pareciam simplesmente malucas, eu não tinha obedecido por confiança, tinha o feito por medo, medo daquele que se portava feito um general de guerra mesmo diante de adolescentes.

Amon se abaixou e pegou a cobra, que se enrolava lentamente em seu braço, demonstrando nem um pingo de medo daquela situação, encarou a criatura em seus olhos ausentes de vida e então a levou até o jarro novamente.

Estava começando um dia inesquecível para mim... De uma péssima forma.

- Nós vamos precisar trabalhar o físico de vocês se quisermos tem algum resultado positivo. - Falava Amon, agora após aterrorizar a todos parecia ainda mais imponente. O silêncio como resposta era um claro resultado sobre toda aquela loucura que ocorrera minutos antes.

O primeiro dia de treinamento tinha como principal base nos exaurir, esgotar todas as nossas forças com corridas ao redor de um campo arenoso, com os pés descalços e o calor escaldante queimando nossas peles, centenas de metros eram percorridos, um ou dois jovens desmaiavam de exaustão. Enquanto isso, Amon continuava firme olhando para nós parado feito uma estátua. Ao menos uma coisa eu devia concordar sobre ele, a disciplina era imprescindível.

Depois de muito correr tivemos alguns minutos de descanso, aqueles que haviam desmaiado recebiam cuidados, mas eram eliminados do treinamento, devia admitir que naquele momento, sentado no chão enquanto assistia cada gota de meu suor escorrer por todo meu corpo, tinha uma vontade imensa de desistir, de me lançar ao solo e permanecer ali, mas eu não podia simplesmente fazer isso logo no primeiro dia... Tinha uma pressão muito grande em cima de mim, Donkor tinha passado por aquele treinamento do Exército em sua adolescência, Amon também, inclusive com grandes méritos, eu não podia ser o único de meus irmãos a falhar.

Já se passavam horas desde o início, e finalmente depois de tanto tempo tínhamos um real descanso, afinal precisávamos comer, todos nós, felizmente a culinária do palácio era a melhor de todas, e os guardas comiam também desta, claro que, não exatamente a mesma comida que nós, mas ainda era algo agradável, e eu só percebia isso naquele momento, quando Amon me direcionava a ir junto dos outros, quase como me dizendo que naquele momento eu era nada além de um plebeu e comeria do mesmo que todos.

Não resisti, sequer tinha forças para contradizer alguma coisa ou tentar discordar, apenas aceitei e segui para o refeitório junto aos outros, o banquete que eu estava acostumado a ver não estava disposto em nenhuma das mesas, invés disso, fazíamos filas com nossos pratos para receber uma quantia generosa de comida, conseguia perceber que aquilo não era da mesma qualidade que eu estava acostumado a comer, mas também não era de todo mal.

Ainda mais na situação faminta que eu estava, mesmo que não fosse uma comida da melhor qualidade, não cheirava mal, não tinha um aspecto ruim, não me havia esforço para comer aquilo.

Em uma outra mesa, isolado, estava Amon comendo em silêncio com seus olhos observando o distante, parecia ter alguma determinação em seu olhar que eu não conseguia decifrar, o que ele podia estar pensando? Me perdi observando meu irmão até que uma voz me chamou atenção.

– Ele é casca grossa, né? Kikiki. – Um dos outros que estavam no treinamento dizia, nenhum deles tinha falado comigo até então, não que isso me chateasse, conseguia compreender que minha hierarquia podia afastar alguns, não me importava o suficiente para me chatear pela falta de amigos. Porém, me surpreendia pelo contato repentino daquele garoto e ficava sem palavras para responder. – É melhor você comer logo, meu pai me disse que no primeiro dia é onde eles testam quem realmente quer entrar para a guarda. Acho que o treinamento vai ficar mais pesado. – Eram palavras sabias para alguém jovem.

Voltei minha atenção para o jovem, os cabelos compridos amarrados para trás, e seus traços, não me faziam menção de alguém em especifico, seria o pai dele alguém importante na guarda? Apenas confirmei com a cabeça ainda sem dar uma palavra de volta, e continuei a comer do prato a minha frente. O garoto tinha total razão, ficar fraco pela fome seria extremamente prejudicial neste dia. Mas minha cabeça estava em outro lugar, imaginava como teria sido, se meu pai tivesse explorado ilhas pelo mundo ao invés de ter morrido no Kayro. Nascer em outro lugar mudaria meu destino de alguma forma?

Não era que me faltava carisma ou isenção de vontade de fazer amizades, só não tinha certa dificuldade em me socializar com aqueles garotos que pareciam tão cansados quanto eu, a diferença era que a culpa disso era de meu irmão, não deles. Porém, o garoto parecia insistir em algum tipo de amizade.

– O que faz um membro da realeza participar desse treinamento? Digo... Você não precisa garantir um futuro em algum lugar, certo? – Continuava o jovem. – A propósito, pode me chamar de Libe, você é Kahleed, certo? – Sua boca cheia ao falar me mostrava um pouco sua falta de etiqueta, eu por outro lado comia vagarosamente e terminava de mastigar para responder. – Meus irmãos fizeram esse treinamento, então preciso fazer também. – Terminava dando um sorriso até um tanto contente por ter alguém para conversar um pouco. Sabia que essa socialização duraria pouco, então que ao menos aproveitasse o curto papo.

Não seria sensato nos tirar com estômagos cheios para voltarmos as tarefas, Amon não era louco a ponto disso, era? Voltei meus olhos à meu irmão e via que seu prato estava vazio, nossos olhares se cruzaram e ele se levantou, espiei a minha comida mais uma vez afim de verificar se ainda faltava muito e acertei que sim.

Ao levantar minha cabeça outra vez, pude ver que Amon caminhava para outro local, deixando todos nós sozinhos ali.

Os minutos se passavam e realmente Amon não reaparecia, mas em toda a minha apreensão, finalizei minha refeição e carreguei meu prato até a mesa onde todos estavam colocando, aquilo não me era uma ação comum, visto que os vassalos costumavam recolher meu prato, portanto, me senti intimado a agir igual aos outros.

Assim que depositava o objeto na mesa me sentia tentado a ir investigar o paradeiro de Amon, poderia apenas deixa-lo e voltar ao meu lugar, mas algo me dizia para ter essa curiosidade, havia um espirito aventureiro em mim, e assim fazia, começava a caminhar indo ao mesmo local em que Amon estava.

Passava pelas pilastras do palácio com calma, e tomava um susto enorme quando ouvia uma voz atrás de mim. – Onde está indo? – Meu coração parecia sair pela minha boca nesse momento, tinha certeza de que o tremor em minhas pernas me faria cambalear e cair, mas aliviava um pouco ao raciocinar que era a voz de Libe. – Puta Merda, você quase me faz ter um treco. – Falava num grito sussurrado enquanto apoiava meu corpo na parede. – Por que está me seguindo? – Perguntei em um tom quase ameaçador e recebia de retorno um balançar de ombros.

Seja lá o que eu fosse estar pensando em aprontar, me parecia ser ainda mais uma péssima ideia.

Adolescentes aprontando, não havia nada de novo ali. A grande diferença era que eu sabia que minha punição por mais pesada que fosse, ainda seria leve, “perder” o treinamento estava mais para um desejo do que um medo, o que poderia ser contrario aos outros, incluindo Libe.

– Ué, desistiu? – Libe me questionava enquanto eu começava a voltar o caminho. Devolvi na mesma forma que ele havia feito, com o balançar de meus ombros. Seria melhor assim, era o que eu pensava e acabava por estar certo.

Voltávamos ao refeitório onde todos ainda estavam e conversando, alguns eufóricos, outros mais calados, e era questão de poucos minutos passados para que Amon surgisse da direção onde havíamos acabado de voltar. Libe me encarou e deu uma risada repleta de malicia, que não pude evitar de retribuir.

– Vocês já tiverem um descanso prolongado, vamos voltar ao campo. – Qualquer centelha de diversão estava prestes a desaparecer. Os olhares desamparados voltavam aos rostos de todos nós, isso claro, era enquanto Amon estava de costas, já que desanimo certamente não seria aprovado por ele.

Finalmente chegávamos ao campo de treinamento, onde um estande de armas estava posicionado próximo a uma parede, a mesma que horas atrás havíamos todos sentado para descansar.

–A escolha de suas armas primárias é de extrema importância, não precisamos de guerreiros que sabem lutar com todos os tipos de armas, precisamos daqueles que se especializam! É melhor ser ótimo em um do que razoável em vários. – A voz imponente de Amon ressoava por todo o campo.

Um ou dois corriam em direção ao estande, pareciam já certos do que pegariam, fiquei parado a primeira instância apenas observando as armas que os outros pegavam, eu ainda não sabia exatamente o que pegar... Espada me parecia algo muito comum e não me chamava atenção, era a arma que a maioria estava pegando, não conseguia me enxergar usando armas pesadas, como martelos e machados, via Libe tendo dificuldade para carregar um grande machado que tinha quase seu tamanho, seus braços eram mais fortes que os meus, se ele tinha dificuldade certamente eu também teria. Qual arma deveria escolher...

Fiquei mais um ou dois segundos parado em frente ao estande em uma grandiosa dúvida, e passava meus olhos item por item, arcos, foices, manoplas, escudos... Lanças... Isso... armas que não eram tão pesadas, ainda ágeis... E conseguiam aumentar minha distância para com os outros, me parecia a decisão perfeita e ideal para mim. Caminhei até uma das lanças e a peguei em mãos, voltando em seguida para o alinhamento junto ao restante.

O que ocorria em seguida era uma cansativa sequência de repetições, éramos ensinados todos separadamente movimentos básicos, mas que conversavam entre si, um ataque diagonal que todos replicavam, um movimento defensivo e outros. As horas se passavam e novamente a exaustão flertava com nossos corpos e mentes. Amon repetia constantemente a importância de criamos uma memória motora e conseguia reagir com velocidade sem sequer pensar nisso, claro, seus discursos vinham em pausas que ele parava fazer a contagem, um, dois, três, três, dois, um. Sua voz já ecoava em minha cabeça fazendo-me pensar diversas vezes na desistência.

O sol em seu ápice era penoso e deixava tudo ainda mais difícil, mas ao menos dessa vez ninguém havia desistido e aos poucos chegávamos todos ainda de pé ao fim do dia. – Vamos! Em dois dias teremos outro treinamento e não quero saber de sequer um de vocês esquecendo o que aprenderam hoje. –

Finalmente, a noite confortante começava a dar os primeiros sinais de querer surgia, estávamos a quase 10 horas em um treinamento exaustivo, claro que excluindo as duas horas que tínhamos parado para o almoço e felizmente Amon dizia as palavras que todos nós estávamos desejando ouvir.

– Alinhar para descanso!

Voltei para o palácio derrotado, claro que sentia um certo orgulho de mim mesmo por ter aguentado, mas todo meu corpo doía, havia feito um esforço que sequer eu era capaz de acreditar que conseguiria, só deseja um bom e prolongado banho.

Assim que adentrava ao ambiente principal, me chegava um dos vassalos avisando que o banho já estava preparado, pensei se não fosse Donkor aquele que tinha o avisado sobre a minha chegada, ele como Imperador deveria saber a hora que o treinamento para os recrutas da guarda chegava ao fim, mas meu irmão mais velho não estava ali, possivelmente ocupado demais com alguma coisa que envolvia o reino para me dar o luxo de ser recebido por ele.

Concordei com o vassalo e o segui enquanto me escoltava até os aposentos do banho, um local de tamanho razoável, com uma banheira grande que eu conseguia ver uma fina nevoa de vapor se formando, estava exatamente do jeito que eu precisava.

Finalmente sozinho no ambiente, removi minhas roupas e entrei naquela água, que parecia quase sagrada de tão maravilhosa que era aquela sensação morna em meus músculos rígidos e surrados.

Permaneci ali por um longo período, muito mais do que o habitual, não me ocorria pressa em finalizar aquele processo tão relaxante em que me encontrava, enquanto novamente, me pegava pensando em como seria se minha vida fosse diferente. Quem sabe eu pudesse me aventurar no oceano, me tornar um pirata conhecido e viajar por todos os mares, ou um marinheiro honrado que protege a população.

A noite apesar de muito quieta, não era tão relaxante, agora deitado com meu corpo já esfriando, conseguia sentir ainda mais os efeitos de um árduo dia de treinamento. Todos os meus músculos doíam, mesmo as faixas que me eram colocadas e pomadas anestésicas não eram o suficiente para aplacar as dores, não restava alternativa a não ser ficar parado o mais reto possível e evitar me mexer o máximo que conseguisse, mesmo que fosse uma tarefa complicada para mim, que sempre tivera uma certa dificuldade a achar uma boa posição para dormir.

Meus olhos encaravam o teto de meu quarto e eu fazia a única coisa que podia naquela posição... Pensar.

Minha cabeça flutuava sobre como meus irmãos teriam passado por aquele treinamento, se tinham sofrido tanto quanto eu, ou não, era como se eu pudesse sentir que essa vida não era para mim. Vagueava sobre todos aqueles outros jovens e Libe que não deveriam ter um conforto tão grande quanto o meu, mas ainda possuíam uma urgência muito maior em entrar para a guarda... Quer dizer, o futuro deles dependia daquilo... O meu não. O que me fazia pensar sobre outra coisa, como reagiriam meus irmãos se eu simplesmente dissesse que não desejava mais continuar com aquilo? Se estava tão ruim esse começo, eu duvidava muito de que fosse ficar mais brando o treinamento com o passar dos dias...

O dia seguinte finalmente chegava e a dor não havia diminuído, me levantava e fazia a refeição matinal poucas horas depois disso. Planejava relaxar durante todo o dia, me deitava em uma rede que ficava num local ótimo onde eu podia ver dali uma pequena parte da cidade, então me balançava devagar deitado naquele tecido enquanto meus olhos observavam o caminhar das pessoas.

Eu poderia, deveria e queria ficar ali por horas, talvez o dia todo, mas algo que eu via capturava minha atenção, Libe caminhava carregando duas bolsas grandes, meus olhos acompanharam o garoto, até que ele desaparecesse do alcance de minha vista.

Por alguma razão que ainda não entendia por que sentia uma vontade imensa de ir atrás do garoto, procura-lo, me aproximar e jogar conversa fora, uma coisa que eu realmente não tinha vontade de fazer com muita frequência, era isso que se chamava ter um amigo? Alguém que você quer por perto?

Me parecia uma grande besteira, eu tinha conhecido ele a apenas um dia, não tinha como ter me apegado tanto à aquela figura um tanto quanto enigmática, mas extremamente carismática. Continuei deitado ali confabulando sobre a ideia insensata de buscar a companhia de Libe.

O tempo se passava e entre gemidos de dor e expirações de tédio eu me mantinha naquele tecido que continuava a balançar lentamente, não eram muitas dezenas de minutos decorridos até que Libe aparecesse caminhando outra vez. Agora, me levantei rápido, mesmo que ainda com dor, mas parei por um segundo... Estava fazendo isso por carência ou tédio?

Não me pareceu uma dúvida tão importante assim, desci devagar pelas escadas do palácio já tracejando um caminho que me fizesse ficar a frente da direção em que Libe seguia, aquela era a minha cidade e eu não tinha dificuldade alguma em conseguir pegar atalhos nela.

Em questão de poucos minutos eu estava ofegante e a dor em meu corpo parecia desaparecer por conta da adrenalina, que ao passar, fazia me sentir o ardor por todos os meus músculos novamente e o folego faltava. Encostei em uma casa e respirei fundo e soltei o ar olhando para baixo com as mãos no peito, ao levantar minha cabeça, lá estava Libe, parado a poucos metros a minha frente me encarando.

– Olá Kahleed, o que faz por aqui? –

– Eu ... É, eu estava só dando uma volta. – Por alguma razão me parecia melhor mentir do que simplesmente dizer que tinha saído de meu conforto para esbarrar com ele.

- Ah sim! Eu estava ajudando meu pai com uma coisa... Agora tô atoa, quer dar uma volta? – Perguntava Liebe com um sorriso gentil em seu rosto.

Respondi apenas dando de ombro, como se eu não me importasse com aquilo, apesar de ter corrido um monte apenas para chegar até ali. O que me fazia mancar um pouco ao começar a caminhar. – Kiskiskis o treinamento de ontem acabou mesmo com você Kahleed. –

Novamente dei de ombros e continuei quieto com meu caminhar sofrível. Até perceber que Libe não demonstrava as dores físicas que eu estava sentindo, quase como se estivesse pronto para um novo treinamento. – Você pelo visto está bem... – Falei num misto de inveja e curiosidade sobre a condição de meu colega. – Ah sabe como é, meu pai é do exército, desde muito novo ele me treina, então apesar de ontem ter sido bem difícil, eu não estou com muita dor. - Finalizava novamente com um sorriso besta em seu rosto.

Realmente, me recordando sobre o dia anterior, via apenas mais dois ou três que tinham tanta dificuldade quanto eu, alguns pais já deviam treinar seus filhos para esse dia, pelo visto Libe era um desses.
– Eu tô é surpreso que você tenha chegado ao fim do dia de pé kiskiskis.

Continuamos a andar por algum tempo, sem um destino especifico enquanto jogávamos conversa fora. Aos poucos me soltava mais com aquele jovem que havia treinado comigo no dia anterior, ambos sabíamos que no dia seguinte teria mais e não podíamos simplesmente ficar durante todo o dia conversando, Libe tinha outras obrigações para fazer.

Depois de muito conversar finalmente me despedia de meu amigo, e voltava para o palácio satisfeito com toda a conversa que havíamos tido. A tarde logo chegaria ao seu fim e eu poderia apreciar uma boa refeição pela noite, apesar de ainda dolorido eu sentia muito menos do que no começo do dia e esperava que no dia seguinte meu corpo acordasse completamente curado dessas dores.

Ao fim da noite me deitava em minha cama e um sorriso surgia em meu rosto ao pensar em alguns momentos descontraídos com Libe durante o dia. Agora, eu conseguia dormir com mais tranquilidade por sentir menos dor, mas meu corpo ainda estava quente. Restava apenas pegar no sono e apagar para chegar o dia seguinte.

Aos poucos meus olhos começava a pesar e minha vista escurecia... Mergulhava em um sono profundo e até relaxado, mas ao acordar percebia que as dores persistiam, com menos intensidade, mas ainda estavam ali, o que me seria de grande problema.

Com o passar dos dias a rotina se mantinha a mesma e a passos lentos eu me acostumava, em um dia treinava intensamente com todos e no outro encontrava com Libe para que pudéssemos conversar, na maioria das vezes acabávamos por falar sobre o treinamento, ou eu apenas escutava Libe falar sobre seus planos para o futuro, o que me fazia questionar bastante sobre o que eu desejava para meu futuro.

Nos tornamos verdadeiramente amigos de modo que ele passava a frequentar o palácio por diversas vezes, mas sempre me deixava com aquela grande questão sobre o que eu desejava para minha vida, sobre quem eu era e quem poderia ser. Todos os dias após Libe ir embora eu me questionava sobre isso, ele falava sempre de seus sonhos com um entusiasmo gigantesco, enquanto eu não tinha nada a dizer, já que sonhava com uma vida que nunca havia sido minha.

Em breve o primeiro mês do treinamento chegaria ao fim e esta chama que incendiava o peito de Libe assim como dos outros recrutas ainda não tinha acendido em mim. Era como se minha vida ali, fosse apenas um sonho confuso, ou talvez fosse um sonho surreal que eu buscava ter vivido, quem sabe em uma vida passada..

Um mês se passava, e eu chegava até a gostar um pouco daquele treinamento, ou talvez o que me agradasse fosse a companhia. Não sabia dizer. Por diversas vezes tinha pensado em desistir, mas nesse dia em especifico era onde começaríamos a nos enfrentar, não eram duelos até a morte, mas eu não sentia o desejo de machucar ninguém e não sabia como conseguiria fazer isso.

Acordava de manhã e seguia rumo ao campo de treinamento, aquele lugar que havia se tornado tão comum para mim, o suficiente para que conseguisse decorar cada pedrinha, cada grão de areia que estava em seu lugar. E a grande novidade era uma linha circular de tamanho mediano marcada com um pó escurecido, provavelmente carvão.

– Como vocês já sabem, hoje fosses lutarão um contra um, vocês precisarão mostrar o quanto aprenderam e evoluíram, aqueles que não se mostrarem dignos perderão a honra de se juntar a guarda real, estão entendidos? – Como sempre a voz era áspera e forte, a resposta surgia como um coro, onde todos nós, já prendados À aquela forma de agir, dizíamos ao mesmo tempo “Entendidos Capitão”, algo que eu ainda não havia me acostumado a fazer.

– Vocês também assistiram esse confronto, portanto quero que todos se sentem naquele canto e aqueles cujo nome eu chamar deverão vir até aqui, lutarão dentro desta arena. –

Seguimos todos para o canto indicado e ali ficamos, apreensivos, enquanto Amon parava dramaticamente a nossa frente, sua silhueta ocultava o sol, o que fazia parecer apenas uma sombra, mas que aumentava em muito sua imponência.

Os dois primeiros nomes eram ditos, e eles se levantavam e se apresentavam para o combate, pegavam suas armas, o que era preocupante visto que as laminas não estavam protegidas, não existiam de fato regras que impedissem os danos graves.

Engolia em seco e olhava para todos os outros sentados próximos, principalmente Libe, que tinha os olhos brilhando enquanto o confronto dos outros dois iniciava.

Voltei minha visão para aquela luta, Aharon usava de uma espada grande, enquanto Jahi um escudo e uma espada de lamina menor, o escudo se tornava uma escolha perspicaz, era capaz de se mover com velocidade e ainda assim se defender dos golpes pesados de Aharon, este que sempre que atacava ficava com o corpo exposto.

Comecei a usar minha percepção ali para fazer algo que eu só tinha feito com meu colega, examinar a forma de luta deles, eu era perspicaz nisso, mas a visão de fora era sempre mais fácil. Apesar que para todos ali parecia que aquela luta não poderia finalizar sem a vitória de Jahi.

Surpreendentemente o combate durava mais do que o esperado, apesar da desvantagem, Aharon mostrava sua força de vontade em seguir aquele caminho, usava a espada grande de apoio para agilizar esquivas e terminava o combate quando cravava a espada no chão e usava-a como apoio para dar um chute com toda sua força, que era defendido pelo escudo de Jahi, mas que não conseguia se manter de pé. O grito de Aharon ecoou naquela arena enquanto ele puxava sua espada e corria em direção a cabeça do colega, que deitado não conseguiria fazer muita coisa.

Mas a palma de Amon chamava atenção, parecia até mais alta que o urro de Aharon, era o suficiente para que o jovem parasse e levantasse sua espada ao alto. Devia admitir que fora um começo incrível, todos nós gritávamos e pulávamos com aquela vitória improvável. Apesar de perder, Jahi se mantinha contente e cumprimentava seu colega. Ambos tinham lutado feito verdadeiros guerreiros e todos estávamos impressionados.

Logo os próximos nomes eram chamados, e ficávamos todos vidrados aguardando mais um combate épico.

A cada minuto que passava ficava mais ansioso para o momento em que eu seria o escolhido para lutar, e ficava cada vez mais apreensivo ao final de cada luta.

Finalmente eu era o escolhido, meu nome era convocado e eu precisava me levantar, enquanto caminhava até minha lança eu escutava Amon falar quem seria meu oponente.

– Liberion. – Seco, feito uma cobra, eu devia esperar isso de meu irmão, ele já tinha percebido que eu tinha pego amizade com Libe e nada melhor para o showzinho particular dele do que me colocar a prova.

Caminhei lentamente até o círculo segurando minha lança, as faixas em meu braço pareciam já querer sangrar com tamanha cerimônia.

Estávamos nós dois parados a cerca de cinco metros, eu tinha a vantagem da distância, tinha a vantagem da velocidade... Mas Libe segurava um machado de duas mãos, uma arma extremamente pesada e mortífera.

As mãos de Amon se encontravam numa palma que iniciava o confronto, mas eu continuei parado ali, apenas observando meu amigo e o machado que ele carregava, qualquer vacilo poderia significar a morte de um de nós dois, aquilo não era uma brincadeira. Meu desejo naquele momento era simplesmente desistir, eu não podia enfrentar um amigo.

Repousei minha lança no chão e abaixei a minha cabeça, pronto para pedir desistência. Quando escutei Libe falar. – Conheça-me pelo nome, Pastor de Fogo!  – Era como um gatilho fazendo-me erguer a lança e encará-lo nos olhos. Não podia dar a minha desistência agora.

2 semanas atrás

- Eu não sei Libe, não tenho uma grande ambição, sabe? Donkor parece que foi feito para estar no topo do poder, Amon parece ter nascido para guerrear, mas eu... Eu simplesmente não sei meu lugar no mundo, parece que não pertenço aqui... Como... Como se minha vida fosse apenas um sonho. - Minhas palavras saíam desanimadas e tristes de minha garganta, estava sentado abraçado com meus joelhos, nós dois sentados numa duna observando o mar de areia a nossa frente.

Meus olhos se desviavam daquela vastidão e encaravam os de Libe que me devolvia o olhar, ele estava pensativo, como se tentasse buscar alguma resposta para mim, mas era claro que ele não tinha como possuir isso.

- Mas você não deveria simplesmente desistir de continuar com o treinamento, quem sabe acaba pegando gosto pela coisa? -

- Estamos em tempos de paz, nada vai acontecer com Kayro, esse monte de treinamento é só besteira. - Retruquei lançando um punhado de areia para frente, como se ver ela esfarelar no ar fosse trazer algum significado para minhas palavras.

- É realmente complicado Leed... Quer dizer, você sempre teve tudo, acho que isso tira um pouco esse objetivo de conquistar algo... Pode ser que tenha sido esse o problema, seus irmãos tinham algum objetivo na vida deles, você simplesmente não precisa ter, por que já tem tudo. Por que alguém ia querer conquistar o mundo, se já tem um mundo sob seus pés? - Libe dizia enquanto se levantava, limpando a areia de suas roupas.

- Desde muito novo meu pai me ensinou que tudo que ele já conquistou na vida foi através da força bruta, ele já até foi um escravo quando criança, eu sou livre hoje, mas acho que eu quero crescer e libertar as pessoas, você já viu o mar? -

- Eu só vi por pinturas, me traz uma sensação estranha. Não me parece muito diferente do que está a nossa frente, só muda a cor. - Falei um tanto melancólico diante das dunas no deserto.

- Não é igual, no mar tem vida, sempre que está navegando nele está em uma grande aventura, kiskiskis não é igual o deserto. -

- Mas no deserto também há vida, pequenas e mortais criaturas... As dunas são como grandiosas ondas e quando se está perdido é realmente uma aventura conseguir encontrar algo... Quem vive no deserto anseia pela água, e quem está perdido no mar, certamente preferiria estar no deserto. - Respondi, enquanto também me levantava.

Libe era pouco maior que eu, seus cabelos longos e escuros chamavam muito a atenção e quando soltos dançavam no ar, feito ondas pelo mar.

- Eu tenho certeza que o deserto significa a morte e o mar significa a vida... Eu tenho certeza disso.

Não consegui me conter com toda aquela linha poética que Libe soltava e gargalhei levando a mão até a boca para tentar esconder a risada, mas meu colega via e logo me empurrava fazendo-me cair novamente na areia.

- Eeeii!! - Resmunguei.

Libe se posicionou a minha frente, de pé, o sol atrás de si parecia até pequeno perto da postura do jovem. Apontou o dedo diretamente para mim e falou em alto e bom tom. - Quando ficarmos mais velhos vamos velejar! Vamos explorar o mundo! Eu te mostrarei a vida. - Eram palavras que me removiam o ar, não tinhamos como afirmar um acordo assim sem saber sobre o futuro, mas naquele momento nenhuma preocupação pareceu importar, estava convicto de que zarparia para o mar junto de Libe algum dia. Como se ele fosse capaz de remover meus medos, apagar minhas incertezas.

Estiquei minha mão para que ele me levantasse e ficássemos novamente na mesma altura, seguramos nossas mãos e encaramos um ao outro, eu conseguia ver a confiança em seus olhos. - Se não tem um objetivo, então se torne forte para explorar o mundo comigo, Leed! - Afirmou mais uma vez. Eu não conseguia sequer dizer uma única palavra para contrariar aquilo, meu coração parecia se encher com calor, era como se eu finalmente tivesse encontrado alguma razão para minha vida.

Éramos apenas dois jovens que tinham pouca coisa em comum, mas em tão pouco tempo parecíamos ter uma amizade de longos anos.

- Certo! - Falei positivo, esquecendo toda aquela melancolia de outrora.

Libe por sua vez deu um sorriso malicioso, certamente estava orgulhoso de ter convertido alguém para sua causa, como se estivesse acabado de conseguir um membro novo para sua tripulação, parecia apenas o começo de um sonho.

Meu amigo deu alguns passos para trás e mantendo o sorriso falou tentando parecer imponente. - Agora erga seus punhos e me enfrente! Eu sou o Pastor do Fogo! - Ele havia enchido sua boca para dizer essas palavras e eu não aguentava, pastor do fogo? De onde ele tinha tirado esse nome? - hahahaha Esse certamente é o pior apelido que eu já ouvi! O que isso significa?

Não me continha em rir, Libe tinha falhado miseravelmente na sua tentativa de imponência, mas ele se mantinha em postura de combate. Logo percebi que não era apenas uma brincadeira dele.

- O que? Você tá falando serio? - Não tinha armas ali, eu sequer tinha passado por um mínimo de treinamento para lutar com as mãos limpas e foi esse o meu grande argumento para Libe, era isso que me livrava daquele combate, que marcávamos para o próximo dia de descanso do treino.

"Atualmente"

Meu olhar mudava ao ouvir aquelas palavras de Libe, tínhamos um acordo, firmado um contrato e por mais idiota que fosse aquele nome, eu tinha aceitado o seguir para o mar, me tornar um guerreiro com ele.

Levantei a lança e me preparei para o confronto com meu amigo, seria a primeira vez que usaríamos armas de verdade.

Ele veio correndo em minha direção, como sempre, tinha um jeito de lutar muito agressivo, quanto a mim perdia para ele em velocidade, força, só o que tinha era uma boa observação. Corri para o lado escapando do primeiro ataque, que parecia ter zero misericórdia. - Eeei você quer me matar!? - Gritei com ele e olhei para Amon em seguida, esperando algum tipo de intervenção, mas nada, meu irmão tinha um sorriso em seu rosto, ele sabia que Libe era um dos melhores ali e que éramos bons amigos, então se mantinha sempre numa posição neutra quanto ao garoto, porém, era claro que as habilidades de combate de Libe deixavam Amon feliz.

Por outro lado enquanto eu reclamava do primeiro avanço de meu amigo, ele olhava para mim com um sorriso no rosto, mas tinha um olhar sério, realmente não estava para brincadeira, era como se lutasse pelo seu futuro, o que me deixava com um certo medo.

Libe voltava a se movimentar com velocidade em minha direção, eu podia apenas levantar minha lança e colocar em sua frente, deixando-o se empalar, ele era feroz, mas muito descuidado. Sua arma era pesada e o deixava lento, o que acabava por equilibrar nossas velocidades, e vir correndo assim era simplesmente loucura. Eu hesitava em apontar minha lança, tinha um medo real de acabar ferindo-o gravemente e continuava com minhas mãos baixas.

Até que ele se aproximava e realizava o mesmo golpe, outra vez eu corri para me esquivar daquele ataque, todos ali pareciam prestes a vaiar aquele confronto feio e eu sabia disso, acabaria sendo repreendido por Amon se continuasse apenas correndo, precisava reagir de alguma forma.

Uma terceira vez Libe veio até minha direção e eu pensava em uma forma de pará-lo, impedir seu avanço,

Chutei a areia sob meus pés fazendo-a voar em seus olhos, o que o fazia ter que parar para cobrir os olho com o braço, abaixando sua arma, era aí então que eu avançava em sua direção e atingia um golpe... Não usava toda a minha força e não usava o lado laminado de minha arma, batendo em seu tórax como se portasse um bastão, mas meu golpe era fraco e mal fazia-o se mexer ou sentir alguma dor forte.

- Qual é Leed? Isso é tudo que você tem!? Eu não vou pegar leve! -

Eu nem precisava olhar para meu irmão para saber que ele tinha um olhar de decepção, eu não era um guerreiro e certamente não queria machucar um amigo. O que era um verdadeiro problema. Sabia que Libe também não queria me ferir, mas ele era um guerreiro, e não abaixaria seus punhos tão fácil, felizmente aquele confronto não era sobre vida e morte, era apenas de primeiro sangue.

Libe sabia que com aquele machado seria prejudicial para ele, eu tinha maior alcance também, ele precisava resolver isso, era então quando jogava seu machado em minha direção, a arma girava no ar e seguia com velocidade, era espantoso, qual seria a estratégia dele com isso?

Me desviei da arma que vinha e senti o punho de Libe atingindo em cheio meu estômago, era um golpe pesado que me fazia abrir a boca deixando voar cuspe em Libe, que não acabava ali, emendava o soco com um chute frontal que me lançava para fora da arena. O grito de todos surgia, um alvoroço, outra finalização bela, pena que para mim, havia feito absolutamente nada de útil. Amon se aproximava e eu até imaginava a possibilidade dele erguer sua mão para me ajudar a levantar, mas era óbvio que isso não acontecia.

- Você é um imprestável. - Era seco e cruel em suas palavras, apenas continuava caminhando e passava por mim, indo na direção dos outros.

O restante dos confrontos se seguiam, alguns com lutas incríveis e outros nem tanto, até que finalmente chegava o fim. Três nomes eram chamados, entre eles o meu, Amon me dizia que eu não era digno de continuar recebendo o treinamento, para a surpresa de ninguém, Libe parecia querer dizer algo contra a fala do instrutor, mas apenas um olhar meu foi capaz de convencê-lo de não colocar seu futuro em risco por minha causa, não perder a oportunidade que tanto queria, todo seu desejo de lutar, aquilo era importante para ele, mas não para mim.

Fui embora de cabeça baixa, sabia que em algum momento Amon viria falar diretamente comigo, mas os dias se passaram e isso não acontecia, eu estava sempre em meu quarto, hora alguma meu irmão surgiu para dizer algo, assim como Donkor. Eu estava frustrado, parecia que nem sequer meu fracasso era digno de alguma nota, era apenas irrelevante dentro daquela família.

Faziam alguns dias, cerca de duas semanas que eu ignorava os chamados de Libe, sempre que um de nossos serviçais chegavam no quarto informando que meu amigo desejava falar comigo, eu apenas o mandava embora, até um dia que ele simplesmente parou de tentar.

A sensação de depressão me fazia enfiar-me em meu mundo, por diversas vezes me via em um dilema simples, me esforçar mais para provar meu valor à meus irmãos ou apenas ignorar isso e continuar minha vida sem me importar sobre o que achavam?

Foram semanas comendo em meu próprio quarto sozinho, Donkor ainda extremamente ocupado talvez sequer soubesse de minha fraqueza diante do treinamento, ou estivesse envergonhado demais para falar comigo, fofocas sempre se espalhavam rápido, "o irmão mais novo do imperador não tinha sequer passado da primeira etapa de treinamento, era fraco" seria o tipo de frase fácil de ser ouvida, certamente minha má fama já estava espalhada... É... Donkor devia mesmo apenas estar envergonhado.

Até mesmo eu estava envergonhado daquilo, triste com minha fraqueza e precisaria de muito tempo para conseguir me recompor... Em alguns meses chegou a noticia de que a esposa de Donkor estava grávida, soava como um milagre, faziam anos que ele tentava ter algum sucessor e agora finalmente conseguiria isso, era certo de que meu irmão devia estar em grande alegria quanto a isso.

Quanto a mim, somente aumentava o pensamento de que não pertencia à aquele lugar, não havia nada ali para mim ali.

1 Ano Depois

Faziam cerca de 3 meses que a princesa nomeada Zahra tinha nascido, meu irmão ainda se mostrava frustrado por ser uma menina invés de um primogênito. Era praticamente o grande sonho dele passar o império para um sucessor que fosse seu filho, talvez ele só não quisesse deixar Kayro nas mãos de Amon que mais parecia um brutamontes, ou nas minhas mãos que bem... Não tinha muita serventia.

Eu estava com 16 anos e mesmo após um completo ano sem falar com Libe, eu não tinha me esquecido da promessa que havia feito a ele, depois de tanto tempo eu já tinha aceitado que havia me afastado justamente por não ser capaz de cumprir minha parte no acordo, eu era fraco e apenas atrapalharia ele a conquistar seus sonhos. Me parecia ser melhor assim.

Ficava sabendo através de fofocas que Libe era um dos favoritos de Amon, isso me animava bastante, saber que meu grande amigo tinha se aprimorado ainda mais em seus combates e ficava surpreso ao ouvir que o último teste, depois de um ano inteiro de treinamento exaustivo, era enfrentar Amon em um combate mano a mano. Sentia que eu precisava estar presente nesse momento, mesmo que distante, eu devia esse apoio a Libe.

Sondava os corredores do palácio para descobrir quando exatamente seria o confronto de Libe com Amon e descobria com facilidade o que desejava, no dia seguinte, mesmo horário em que costumava ir ao treino, era esse o momento da luta. Me sentia eufórico durante todo o dia aguardando o seguinte. Não sabia exatamente como me sentir em relação a isso, devia mesmo aparecer lá? Poderia ficar na arquibancada assistindo ou seria melhor ficar escondido? Estaria entre meus irmãos? ... Não... Certamente não desejaria estar ao lado de Donkor para ver isso.

Divagava durante todo o dia, andando de um lado para o outro em extrema ansiedade sobre como deveria prosseguir... Falaria com Libe? Não.. Certamente não.

O desejo que as horas passassem só as fazia prosseguirem com lentidão, quase como um feitiço jogado contra mim por ter me afastado dele, poderia talvez oferecer meu apoio ainda hoje, um dia antes do confronto... Não... Era melhor também não fazer isso, poderia acabar atrapalhando-o. Droga.

Era agoniante apenas existir naquela condição, me lançava na cama e ali ficava por horas, tentando forçar algum sono para ver se o dia passava mais depressa... Claro que isso não funcionava e só me deixava extremamente desanimado mesmo eufórico.

...

Finalmente chegava o dia seguinte, acordava até mais cedo que o costumeiro com imensa facilidade e me arrumava, botava as melhores roupas que tinha, joias brilhantes e partia rumo ao coliseu onde começariam as lutas. Todo Kayro parecia completamente animado com aquele grande evento, era realmente um dos maiores eventos que tínhamos na ilha e todos tinham grande apresso por isso. Mesmo das janelas do palácio eu já conseguia ver o numero de pessoas que seguiam rumo ao local.

Decidia por pegar outro caminho, aquele destinado aos membros do império, quase um labirinto de tuneis que passavam por baixo da cidade, tendo uma de suas saídas o coliseu. Não me interessava se buscariam por mim ou não, talvez algum serviçal fosse me chamar no quarto dentro de alguma hora a mando de Donkor, mas deixaria para eles o mistério de minha localização, não me importava com represálias. Apesar de que Donkor estava sempre ocupado demais e Amon não dava a mínima para mim.

Caminhei pelos corredores daquela passagem subterrânea indo rumo ao coliseu, o silêncio daquele local me fazia pensar se era mesmo a melhor decisão, estava sendo extremamente emocional ao ir assistir isso e devia ser sincero comigo mesmo em saber que não fazia aquilo por Libe, não era para agradar ele que eu estava indo, era para me agradar.

Parei por um minuto, Libe era um amigo para mim, ou eu o via como algo mais do que isso, olhava para o passado e lembrava-me do sentimento de estar ao lado dele. Eu estava apaixonado por Libe? Parando para pensar, ele era o único que havia me feito sentir algum propósito na vida, desejado lutar mesmo que eu fosse fraco demais para isso.

Devia contar? Dizer para ele que me afastei não só por me sentir incapaz de lutar ao seu lado como prometia, mas sim por não querer que ele visse mais fraqueza em mim?
Apertei meu peito com a minha mão e soquei a parede com a outra, estava indignado de só ter percebido esse sentimento agora.